Realmente, eu vivo num tempo sombrio.
A inocente palavra é um despropósito. Uma fronte sem ruga
denota insensibilidade. Quem está rindo
é só porque não recebeu ainda
a notícia terrível.
uma conversa sobre árvores chega a ser falta,
pois implica silenciar sobre tantos crimes?
Esse que vai cruzando a rua, calmamente,
então já não está ao alcance dos amigos
necessitados?
do que faço me dá direito a isso, de comer a fartar-me.
Por acaso me poupam. (Se minha sorte acaba,
estou perdido.)
Mas como hei de comer e beber, se
o que eu como é tirado a quem tem fome, e
meu copo d’água falta a quem tem sede?
Contudo eu como e bebo.
Nos velhos livros consta o que é sabedoria:
manter-se longe das lidas do mundo e o tempo breve
deixar correr sem medo.
Também saber passar sem violência,
pagar o mal com o bem,
os próprios desejos não realizar e sim esquecer,
conta-se como sabedoria.
Não posso nada disso:
realmente, eu vivo num tempo sombrio!
Às cidades cheguei em tempo de desordem,
com a fome imperando.
Junto aos homens cheguei em tempo de tumulto
e me rebelei com eles.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.
Para dormir deitei-me entre assassinos.
O amor eu exercia sem cuidado
e olhava sem paciência a natureza.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.
A fala denunciava-me ao carrasco.
Bem pouco podia eu, mas os mandões
sem mim sentiam-se mais garantidos, eu esperava.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.
ficava a grande distância;
claramente visível, conquanto para mim
difícil de alcançar.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.
III
em que nos afogamos,
pensai,
quando falardes em nossas fraquezas,
também no tempo sombrio
a que escapastes.
em meio às lutas de classes, desesperados,
enquanto apenas injustiça havia e revolta nenhuma.
também o ódio à baixeza
endurece as feições,
também a raiva contra a injustiça
torna mais rouca a voz. Ah, e nós,
que pretendíamos preparar o terreno para a amizade,
nem bons amigos nós mesmos pudemos ser.
Mas vós, quando chegar a ocasião
de ser o homem um parceiro para o homem,
pensai em nós
com simpatia.
Bertold Brecht
Foi um destacado dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX. Seus trabalhos artísticos e teóricos influenciaram profundamente o teatro contemporâneo, tornando-o mundialmente conhecido a partir das apresentações de sua companhia o Berliner Ensemble realizadas em Paris durante os anos 1954 e 1955.

Fonte:
https://blogdocastorp.blogspot.com.br/2017/05/bertolt-brecht-aos-que-vao-nascer.html
BRECHT, Bertolt. Aos que vão nascer. Tradução de Geir Campos. In: GULLAR, Ferreira (Organização e Traduções). O prazer do poema: uma antologia pessoal. Rio de Janeiro, RJ: Edições de Janeiro, 2014. p. 250-253.