sábado, 10 de setembro de 2016

Poemas de Cecília Meireles

Canção do mundo acabado
Meus olhos andam sem dono,
somente por te avistarem
de uma tão grande distância.

De altos mastros ainda rondo
tua lembrança nos ares
o resto é sem importância.

Certamente, não há nada
de ti, sobre este horizonte
desde que ficaste ausente.

Mas é isso que me mata:
sentir que estás não sei onde,
mas sempre na minha frente.

Não acredite em tudo
que disser a minha boca
sempre que te fale ou cante.


Quando não parece, é muito,
quando é muito, é muito pouco,
e depois nunca é bastante...

Foste o mundo sem ternura
em cujas praias morreram
meus desejos de ser tua.

A água salgada me escuta
e mistura nas areias
meu pranto e o pranto da lua.

Penso no que me dizias,
e como falavas, e como te rias...
Tua voz mora no mar.

A mim não fizeste rir
e nunca viste chorar
(porque o tempo sempre foi
longo para me esqueceres
e curto para te amar.)

Cecília Meireles



Alva
Deixei meus olhos sozinhos
nos degraus da sua porta.

Minha boca anda cantando,
mas todo o mundo está vendo
que a minha vida está morta.

Seu rosto nasceu das ondas
e em sua boca há uma estrela.

Minha mão viveu mil vidas
para uma noite encontrá-la
e noutra noite perdê-la.

Caminhei tantos caminhos,
tanto tempo e não sabia
como era fácil a morte
pela seta do silêncio
no sangue de uma alegria.
Seus olhos andam cobertos
de cores da primavera.
Pelos muros de seu peito,
durante inúteis vigílias,
desenhei meus sonhos de hera.
Desenho, apenas, do tempo,
cada dia mais profundo,
roteiro do pensamento,
saudade das esperanças
quando se acabar o mundo…
Cecília Meireles

Pássaro
Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.

Ele amava a água sem sede,
e, em verdade,
tendo asas, fitava o tempo,
livre de necessidade.

Não foi desejo ou imprudência:
não foi nada.
E o dia toca em silêncio
a desventura causada.

Se acaso isso é desventura:
ir-se a vida
sobre uma rosa tão bela,
por uma tênue ferida.
Cecília Meireles

Fadiga
Estou cansada, tão cansada,
estou tão cansada! Que fiz eu?
Estive embalando, noite e dia,
um coração que não dormia
desde que seu amor morreu.

Eu lhe dizia: "Deixa a morte
levar teu amor! Não faz mal,
É mais belo esse heroísmo triste
de amar uma coisa que existe
só para morrer, afinal!"

"Deixa a morte...não chores...dorme!"
Noite e dia eu cantava assim.
Mas o coração não falava;
chorava baixinho, chorava,
mesmo como dentro de mim.

Era um coração de incertezas,
feito para não ser feliz;
querendo sempre mais que a vida -
sem termo, limite, medida,
como poucas vezes se quis.

O tempo era ríspido e amargo.
Vinha um negro vento do mar.
Tudo gritava, noite e dia,
e nunca ninguém ouviria
aquele coração chorar.


Uma noite, dentro da sombra,
dentro do choro, a sua voz
disse uma coisa inesperada,
que logo correu, derramada
num silêncio fino e veloz.

"Meu amor não morreu: perdeu-se.
Ele existe. Eu não o quero mais".
O choro foi levando o resto
Eu nem pude fazer um gesto,
e achei as horas desiguais.

E achei que o vento era mais forte,
que o frio causava aflição;
quis cantar, mas não foi preciso.
E o ar estava muito indeciso
para dar a vida a uma canção.

A sorte virara no tempo
como um navio sobre o mar.
O choro parou pela treva.
E agora não sei quem me leva
daqui para qualquer lugar,

onde eu não escute mais nada,
onde eu não saiba de ninguém,
onde deite minha fadiga
e onde murmure uma cantiga
para ver se durmo também.
Cecília Meireles

Mudo-me breve
Recobro espuma e nuvem
e areia frágil e definitiva.
Dispõem de mim o céu e a terra,
para que minha alma insolúvel
sozinha apenas viva.
Naquelas cores de miragem
da água e do céu, mais me compreendo.
Anjo instrutor em silêncio me leva:
e elas me fazem
ver que sou e não sou, no que estou sendo.
Fico tão longe como a estrela.
Pergunto se este mundo existe,
e se, depois que se navega,
a algum lugar, enfim, se chega...
- O que será, talvez, mais triste.

Nem barca, nem gaivota:
somente sobre-humanas companhias...
Em suas mãos me entrego,
invisíveis e sem resposta.

Calada vigiarei meus dias.

Quanto mais vigiados, mais curtos!
Com que mágoa o horizonte avisto...
aproximado e sem recurso.
Que pena, a vida ser só isto!

Cecília Meireles

Epigrama nº 10
A minha vida se resume,
desconhecida e transitória,
em contornar teu pensamento,

sem levar dessa trajetória
nem esse prêmio de perfume
que as flores concedem ao vento.

Cecília Meireles

Embalo
Adormeço em ti minha vida,
- flor de sombra e de solidão -
da terra aos céus oferecida
para alguma constelação.

Não pergunto mais o motivo,
não pergunto mais a razão
de viver no mundo em que vivo,
pelas coisas que morrerão.

Adormeço em ti minha vida,
imóvel, na noite, e sem voz.
A lua, em meu peito perdida,
vê que tudo em mim somos nós.

Nós! - E no entanto eu sei que estão
brotando pela noite lisa
as lágrimas de uma canção
pelo que não se realiza...

Cecília Meireles


Em voz baixa
Sempre que me vou embora
é com silêncio maior.
As solidões deste mundo
conheço-as todas de cor.
Desse-me a sorte um cavalo,
Ou um barco em cima do mar!
Relincho ou marulho – algum
Coisa que me acompanhar!
Mas não. Sempre mais comigo
vou levando os passos meus,
até me perder de todo
no indeterminado Deus.
Cecília Meireles


''Lá, na raiz das lágrimas..."
Lá, na raiz das lágrimas,
a divina memória
dorme sonhos antigos
sem hora de acabar-se.

(Oh! na raiz das lagrimas,
onde tudo é possível,
manselinho, os ciprestes
se recamam de orvalho...)

Lá, na raiz das lagrimas,
lavram os pensamentos
um denso musgo frouxo,
sem rastros de presença.

(Oh! na raiz das lagrimas,
uma areia de estrelas
forma e desmancha praias,
e o horizonte caminha.)

Lá, na raiz das lagrimas,
não existe mais rosa,
não existe mais barca,
não existe mais vento.

(Dorme, tênue memória,
em leito sem limites,
livre de qualquer sonho,
onde tudo é possível!)
Cecília Meireles
In: Canções (1956)

"Eu vejo o dia, o mês, ano ..."
Eu vejo o dia, o mês, o ano
- Por que viver sem ser preciso?
Eu não te minto, eu não te engano,
eu não te fujo: - eu agonizo.

Como um suspiro em pleno oceano,
digo-te adeus. Deixo-te o aviso
para outro encontro sobre-humano,
à luz de um vago Paraíso.

Sob o divino meridiano,
o sereno lábio conciso
beija o seu dolorido arcano*
como se fosse outro sorriso.


* arcano - Operação misteriosa dos alquimistas, coisa misteriosa ou secreta.


"Timidez

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...

- mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras distantes...

- palavras que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...

- e um dia me acabarei."
Cecília Meireles

Maldição
Hoje é tarde para os desejos,
e nem me interessa mais nada...
Cheguei muito depois do tempo
em que se pode ouvir dizer: «Oh! minha amada...»

O mar imóvel dos teus olhos
pode estar bem perto, e defronte.
Mas nem navega as horas
nem se cuida mais de horizonte.

Durmo com a noite nos meus braços,
sofrendo pelo mundo inteiro.
O suspiro que em mim resvala
bem pode ser, a cada instante, o derradeiro.

Morrer é uma coisa tão fácil
que todas as manhãs me admiro
de ter o sono conservado
fidelidade ao meu suspiro.

E pergunto: «Quem é que manda
mais do que eu sobre a minha vida?
Neste mar de só desencanto,
que sereia murmura uma canção desconhecida?

E em meus ouvidos indiferentes,
alheios a qualquer vontade,
que rostos vão reconhecendo
os passeios da eternidade?

Perto do meu corpo estendido,
náufrago inerte de sombras e ares,
quem chegará, desmanchando secretos níveis?
Serás tu? - para me levares...»

(Vejo a lágrima que escorre
por cima da minha pena.
Ai! a pergunta é sempre enorme,
e a resposta, tão pequena...)

Cecília Meireles



Se não houvesse montanhas
Se não houvesse montanhas!
Se não houvesse paredes!
Se o sonho tecesse malhas
e os braços colhessem redes!

Se a noite e o dia passassem
como nuvens, sem cadeias,
e os instantes da memória
fossem vento nas areias!

Se não houvesse saudade, solidão nem despedida...
Se a vida inteira não fosse, além de breve, perdida!
Eu não tinha cavalo de asas,
que morreu sem ter pascigo
E em labirintos se movem
Os fantasmas que persigo.
Cecília Meireles

De longe te hei-de amar 
De longe te hei-de amar
- da tranquila distância
em que o amor é saudade
e o desejo, constância.

Do divino lugar
onde o bem da existência
é ser eternidade
e parecer ausência.

Quem precisa explicar
o momento e a fragrância
da Rosa, que persuade
sem nenhuma arrogância?

E, no fundo do mar,
a Estrela, sem violência,
cumpre a sua verdade,
alheia à transparência.
Cecília Meireles, in 'Canções' 

"Quem falou de primavera sem ter visto seu sorriso, falou sem saber o que era."
Cecília Meireles


"O choro vem perto dos olhos para que a dor transborde e caia.
O choro vem quase chorando, como a onda que toca na praia.
Descem dos céus ordens augustas e o mar leva a onda para o centro.
O choro foge sem vestígios, mas deixando náufragos dentro!"
Cecília Meireles


Frases

Seja passado o passado. Tome-se outra vereda e pronto.
Miguel de Cervantes

O passado é um segundo coração que bate em nós.”
Henry Bataille (1872-1922), dramaturgo francês.

Quem na vida nunca foi doido,
já mais será sábio.
Pichot


Eu já não posso cigana.
Ela tomou conta de mim.
Eu sinto o seu hálito até agora.
Eu sinto a sua pele em minhas mãos.
O gosto de sua saliva em minha boca.
Eu não sei o que aconteceu comigo!
Jean Pierre

Sim sou ciumenta,
eu sei bem o que há no fundo do meu ciúme
quando analiso, encontro nele preconceitos hereditários,
um orgulho de selvagem, uma sensibilidade doentia,
um misto de violência estúpida e de fraqueza cruel,
uma revolta imbecil e má contra as leis da vida e do mundo.
Fani

O ciúme é uma forma do ódio
de quem não obtém o que deseja.
Quem ama e não tem, odeia.
Pichot

Eu acho que tem um mundo aí dentro,
ainda não explorado.
Seria necessário uma grande emoção,
para que a sua mão abrisse
e todos os seus sentimentos viessem a tona.
Liberte-se, de vasão a tudo o que você sente.
A vida é uma só. Pense nisso!
Pichot


O amor é que nem um pássaro
que migra para vários lugares.
Quando ele se fixa, é porque já não pode voar tão alto.
Juliet


O domínio dos elementos requer do observador que ele consiga ver através da matéria quase sempre tende a iludir os menos perspicazes.
Ravengar

O demônio só aceita uma moeda, a sua alma, que vai deformar a sua personalidade. 
Ravengar

Fonte:
Frases e poemas tirados da novela "Que Rei Sou Eu" (1989) de Cassiano Gabus Mendes.