quarta-feira, 5 de julho de 2017

Aos que vão nascer

I  
Realmente, eu vivo num tempo sombrio. 
A inocente palavra é um despropósito. Uma fronte sem ruga 
denota insensibilidade. Quem está rindo 
é só porque não recebeu ainda 
a notícia terrível.  

Que tempo é este em que 
uma conversa sobre árvores chega a ser falta, 
pois implica silenciar sobre tantos crimes? 
Esse que vai cruzando a rua, calmamente, 
então já não está ao alcance dos amigos 
necessitados?  


É verdade: ainda ganho o meu sustento. 

Porém, acreditai-me: é puro acaso. Nada 
do que faço me dá direito a isso, de comer a fartar-me. 
Por acaso me poupam. (Se minha sorte acaba, 
estou perdido.)  

Dizem-me: – Vai comendo e vai bebendo! Alegra-te com o que tens! 
Mas como hei de comer e beber, se 
o que eu como é tirado a quem tem fome, e 
meu copo d’água falta a quem tem sede? 
Contudo eu como e bebo.  

Eu bem gostaria de ser um sábio. 
Nos velhos livros consta o que é sabedoria: 
manter-se longe das lidas do mundo e o tempo breve 
deixar correr sem medo. 
Também saber passar sem violência, 
pagar o mal com o bem, 
os próprios desejos não realizar e sim esquecer, 
conta-se como sabedoria. 
Não posso nada disso: 
realmente, eu vivo num tempo sombrio!  

II  
Às cidades cheguei em tempo de desordem, 
com a fome imperando. 
Junto aos homens cheguei em tempo de tumulto 
e me rebelei com eles. 
Assim passou-se o tempo 
que sobre a terra me foi concedido.  

Minha comida mastiguei entre refregas. 
Para dormir deitei-me entre assassinos. 
O amor eu exercia sem cuidado 
e olhava sem paciência a natureza. 
Assim passou-se o tempo 
que sobre a terra me foi concedido.  


As ruas do meu tempo iam dar no atoleiro. 
A fala denunciava-me ao carrasco. 
Bem pouco podia eu, mas os mandões 
sem mim sentiam-se mais garantidos, eu esperava. 
Assim passou-se o tempo 
que sobre a terra me foi concedido.  

Minguadas eram as forças. E a meta 
ficava a grande distância; 
claramente visível, conquanto para mim 
difícil de alcançar. 
Assim passou-se o tempo 
que sobre a terra me foi concedido.  

III  

Vós, que vireis na crista da maré 
em que nos afogamos, 
pensai, 
quando falardes em nossas fraquezas, 
também no tempo sombrio 
a que escapastes.  

Vínhamos nós então mudando de país mais do que de sapatos, 
em meio às lutas de classes, desesperados, 
enquanto apenas injustiça havia e revolta nenhuma.  

E entretanto sabíamos: 
também o ódio à baixeza 
endurece as feições, 
também a raiva contra a injustiça 
torna mais rouca a voz. Ah, e nós, 
que pretendíamos preparar o terreno para a amizade, 
nem bons amigos nós mesmos pudemos ser. 
Mas vós, quando chegar a ocasião 
de ser o homem um parceiro para o homem, 
pensai em nós 
com simpatia.
Bertold Brecht

Foi um destacado dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX. Seus trabalhos artísticos e teóricos influenciaram profundamente o teatro contemporâneo, tornando-o mundialmente conhecido a partir das apresentações de sua companhia o Berliner Ensemble realizadas em Paris durante os anos 1954 e 1955.

Este poema, visualmente apresentado como três seções interconectadas com claras modulações marxistas, foi escrito em 1939 por Brecht, na Dinamarca, para onde ele havia partido, em fuga do regime nazista, então a promover um catálogo de indignidades. As suas estrofes, sobretudo as derradeiras, estão carregadas de pesar e ansiedade. Desapontado, recorre à posteridade para que pondere, antes de condenar a sua geração, sobre as terríveis circunstâncias vividas pelo povo alemão naquele momento, instrumentalizado por uma ideologia destrutiva.

Fonte:
https://blogdocastorp.blogspot.com.br/2017/05/bertolt-brecht-aos-que-vao-nascer.html
BRECHT, Bertolt. Aos que vão nascer. Tradução de Geir Campos. In: GULLAR, Ferreira (Organização e Traduções). O prazer do poema: uma antologia pessoal. Rio de Janeiro, RJ: Edições de Janeiro, 2014. p. 250-253.